Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.
Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.
E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.
Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.
E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar-lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.
E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam-me, e não me deixam sequer mirar a rosa-dos-ventos.
"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!"
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece-mos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.
Queremos a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.
O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.
O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.
Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.
Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.
Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,
cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.
Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.
E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.
Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.
Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.
E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.
Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.
E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre-humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.
E retrai-se, ao dizer-me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo-se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.
Cecilia Meireles (In Mar Absoluto, 1945)
MAR ABSOLUTO
Desde siempre existió el mar,
Y pretéritas multitudes me empujaban
como a un barco olvidado.
Ahora recuerdo que hablaban
de la revuelta de los vientos,
de velas, de cuerdas, de hierros,
de sirenas varadas en la costa.
Y el rostro de mis abuelos viajaba
por los mares de Oriente, con sus corales y perlas,
y por los mares del Norte, duros de hielo.
De esta forma, es a mí a quien hablan,
soy yo quien debo ir.
Porque no hay nadie,
tan decidido a amar y a obedecer a sus muertos.
Y tengo que buscar a mis remotos tíos ahogados.
Tengo que llevarles redes de rezos,
campos convertidos en velas,
barcas sobrenaturales
con peces mensajeros
y cantos náuticos.
Y quedo absorta,
de repente despierta en playas tumultuosas.
Y me apuran, y no me dejan siquiera mirar la rosa de los vientos.
"¡Adelante! ¡Por el ancho mar!
¡Liberando el cuerpo del aprendizaje de la arena!
¡Al mar! - ¡Humana disciplina para la empresa de la vida!"
Mi sangre se entiende con esas voces poderosas.
La solidez de la tierra, monótona,
nos parece débil ilusión.
Queremos la gran ilusión del mar,
multiplicada en sus redes de peligro.
Queremos su soledad robusta,
una soledad por doquier,
una ausencia humana que se opone al mezquino hormiguear del mundo,
y hace sólido al tiempo, libre de las luchas de cada día.
El heróico aliento del mar tiene su polo secreto,
que los hombres sienten, seducidos y miedosos.
El mar es sólo mar, desprovisto de apegos,
muriéndose y reviviendo,
corriendo como un toro azul por su propia sombra,
y arremetiendo con bravura contra nadie,
y después siendo la pura sombra de sí mismo,
por sí mismo vencido. Es su gran ejercicio.
No precisa del destino seguro de la tierra,
él que, a la vez,
es el bailarín y su baile.
Tiene un reino de metamorfosis, para la experiencia:
su cuerpo es su propio juego,
y su eternidad lúdica
no sólo gratuita: sino perfecta.
Baraja sus grandes contrastes:
caballo, épico, anémona suave,
se entrega a todos, desprecia ritmo
jardines, estrellas, colas, antenas, ojos, pero es deshojado,
ciego, desnudo, dueño sólo de sí,
de su inequívoca grandeza despojada.
No se olvida que es agua, al desplegar sus visiones:
agua de todas las posibilidades,
pero sin flaqueza ninguna.
Y como agua me habla.
Me arroja caracolas, como recuerdos de su voz,
y estrellas erizadas, como invitación a mi destino.
No me llama para que vaya sobre él,
ni por dentro de él:
sino para que me convierta en él mismo. Es su máximo don.
No quiere arrastrarme como otrora a mis tíos,
ni lentamente conducirme
como a mis abuelos, de serenos ojos certeros.
Sólo me acepta convertida en su naturaleza:
plástica, fluida, disponible,
igual a él, en constante solilóquio,
sin exigencias de principio y fin,
desprendida de tierra y cielo.
Y yo, que llegué cautelosa,
por buscar gente remota,
sospecho que me engañé,
que hay otras órdenes, que no fueron oídas;
que otra boca hablaba: no solamente la de antiguos muertos,
y el mar al que me mandan no es sólo este mar.
No es sólo este mar el que retumba en mis vidrieras,
sino otro, que se parece a él
como se parecen las imágenes de los sueños dormidos.
Y entre agua y estrella estudio la soledad.
Y recuerdo mi herencia de cuerdas y anclas,
y encuentro todo sobrehumano.
Y este mar visible levanta para mí
una faz espantosa.
Y retráese, al decirme lo que preciso.
Y es después una pequeña concha burbujeante,
mancha líquida e inestable,
célula azul sumiéndose
en el reino de otro mar:
¡ah! del Mar Absoluto.
Cecilia Meireles
(Versión de Pedro Casas Serra)
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