CANTIGA DE COMPANHEIRO EM TEMPO DE CUIDADOS
Contigo, companheiro
que chegaste,
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.
Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
Porque tudo é chegar, meu companheiro
desconhecido, meu irmão que plantas
o grão no escuro e nasce a claridão.
É chegar e seguir, os dois cantando,
os dois e a multidão num só caminho,
em direção ao sol que nos ensina
a ser mais cristalinos, parecidos
ao menino que fomos e que somos
de novo dentro do homem, desde que o homem
seja capaz de repartir seu canto
e um pedaço de sol bem luminoso
a esse desconhecido ser que chega
sem nada: traz apenas a esperança
de ver o amor de perto. E sem ter canto
no peito machucado, de repente
de coração contigo vai cantando,
e vai na vida, a vida desgraçada,
achando uma fé nova enquanto um gosto
de também repartir-lhe sobe na alma:
está no seu caminho e então reencontra
o menino que foi, quando a esmeralda
perdida no seu peito resplandece
de amor geral que se reparte e cresce.
Não sei se canto claro, companheiro.
Em tua vida vive o povo inteiro:
antes jamais te vi, mas te sabia
perto de mim, quando aprendi na dor
da queimadura do noturno mundo,
que se alçava voraz contra a alegria
e entranhas devorava e em fome e febre
enrolava a vergonha das mulheres
e pela mão levava sob a lua,
de enferma claridade, as ambulantes
manchas de riso em cujo fundo a infância
era uma rosa sórdida já murcha.
O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.
Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.
É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.
Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.
Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
Porque tudo é chegar, meu companheiro
desconhecido, meu irmão que plantas
o grão no escuro e nasce a claridão.
É chegar e seguir, os dois cantando,
os dois e a multidão num só caminho,
em direção ao sol que nos ensina
a ser mais cristalinos, parecidos
ao menino que fomos e que somos
de novo dentro do homem, desde que o homem
seja capaz de repartir seu canto
e um pedaço de sol bem luminoso
a esse desconhecido ser que chega
sem nada: traz apenas a esperança
de ver o amor de perto. E sem ter canto
no peito machucado, de repente
de coração contigo vai cantando,
e vai na vida, a vida desgraçada,
achando uma fé nova enquanto um gosto
de também repartir-lhe sobe na alma:
está no seu caminho e então reencontra
o menino que foi, quando a esmeralda
perdida no seu peito resplandece
de amor geral que se reparte e cresce.
Não sei se canto claro, companheiro.
Em tua vida vive o povo inteiro:
antes jamais te vi, mas te sabia
perto de mim, quando aprendi na dor
da queimadura do noturno mundo,
que se alçava voraz contra a alegria
e entranhas devorava e em fome e febre
enrolava a vergonha das mulheres
e pela mão levava sob a lua,
de enferma claridade, as ambulantes
manchas de riso em cujo fundo a infância
era uma rosa sórdida já murcha.
O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.
Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.
É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.
Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.
Thiago de Mello, Faz
escuro mas eu canto,
1965.
CANCIÓN DE COMPAÑERO
EN TIEMPO DE CUIDADOS
Contigo, compañero que
llegaste,
desconocido hermano de
mi vida,
reparto esta esmeralda
que retuve
en mi pecho en el
instante fugitivo
pero infinito en que se
acaba la infancia,
porque
la esmeralda no se acaba nunca.
Reparto, compañero,
porque llegas
a este camino largo y
luminoso
pero también áspero y
difícil,
donde nuestros orígenes
se abrazan
disolviéndose en paz
las diferencias,
engendradas en la vida
por la fuerza
feroz con que desune el
mundo a los hombres
que fueron hechos para
cantar juntos
porque sólo juntos
sabrán llegar
a la fiesta de amor que
se prepara.
Porque todo es llegar,
desconocido
compañero, hermano que
plantas
el
grano en lo oscuro y nace la claridad.
Es llegar y seguir, los
dos cantando,
los dos y la multitud
en un sólo camino,
en dirección al sol
que nos enseña
a ser más cristalinos,
parecidos
al niño que fuimos y
que somos
de nuevo dentro del
hombre, cuando el hombre
es capaz de repartir su
canto
y un pedazo de sol
luminoso
a ese ser desconocido
que llega
sin nada: que trae sólo
la esperanza
de ver el amor de
cerca. Y sin tener canto
en el magullado pecho,
de repente
va cantando contigo de
corazón,
y va por la vida, la
desgraciada vida,
hallando una nueva fe
mientras un deseo
de repartir también
crece en su alma:
está en su camino y
entonces reencuentra
al niño que fue,
cuando la esmeralda
perdida en su pecho
resplandece
de
amor general que se reparte y crece.
No sé si canto claro,
compañero.
En tu vida vive el
pueblo entero:
nunca te vi antes, pero
te sabía
cerca de mí, cuando
aprendí en el dolor
de la quemadura del
mundo nocturno,
que se alzaba voraz
contra la alegría
y devoraba entrañas y
con hambre y fiebre
ocultaba la vergüenza
de las mujeres
y llevaba de la mano
bajo la luna,
enferma de claridad,
los pasajeros
tiznes de risa en cuyo
fondo la infancia
era
una rosa sórdida ya marchita.
Es tiempo de cuidados,
compañero.
Es tiempo sobre todo de
vigilia.
El enemigo está suelto
y se disfraza,
pero como usa botines
no es difícil
distinguir el taconeo
grueso y lustroso
que pisa las claras
fuerzas de la verdad
y aplasta el verdor que
da vida a la tierra.
El tiempo es de
mentiras. No conviene
dejar libre al niño de
la esmeralda.
Mejor es protegerlo de
la violencia
que amarra la libertad
en pleno vuelo.
La sombra ya descendió,
y muchas fauces
hambrientas se abrirán
husmeando.
Cuidado, compañero,
esconde la rosa,
espanta la mariposa de
colores,
es
peligrosa esta canción de amor.
Cada uno en su lugar,
en su momento,
no olvide las
acechanzas del enemigo,
que no duerme jamás y
está lleno de ojos.
Y derrame la luz, en el
instante justo,
sobre la garra pavorosa
de su rostro.
Es una espera que
duele, pero sirve
tener el corazón por
ciudadela,
encender una antorcha
en cada metro
de tierra conquistada y
trabajar
mejor, para que el
suelo florezca más
y el trigo se yerga muy
alto en su tallo
para la fiesta de amor,
amplia y general,
donde el hambre
finalmente no va a bailar,
porque no comerán
solamente los elegidos,
porque serán todos
quienes comerán.
Por eso estamos todos
juntos:
nuestra fuerza reúne
el sortilegio
de la torrencial savia
de la primavera,
y nuestro amor palpita
con el ímpetu
de
las aguas amazónicas profundas.
Es cantar, compañero,
y repartir
lo que de amor general
haga falta.
Nadie estará solo
nunca más,
ni en la soledad, ni
en el poder.
Siempre iré contigo, y
es al cantar
cuando te defiendo, y
vierto en tu lámpara
un aceite que dura la
noche entera
esos tiempos de ceniza
en que la vigilia,
espada erguida en llama
como la rosa,
sólo podrá cesar
cuando otra vez,
avergonzada, regrese la
aurora,
que va a bañar de luz
la tierra amada,
y seremos de nuevo y
simplemente
Thiago
de Mello, Está oscuro pero canto,
1965.
(Versión
de Pedro Casas Serra)
No hay comentarios:
Publicar un comentario