sábado, 26 de septiembre de 2015

“SOLILÓQUIO AO PÉ DO BERÇO” de Thiago de Mello (De Romance do Primogênito, 1952)

SOLILÓQUIO AO PÉ DO BERÇO

Cruzaste
a porta do tempo.
Sem resplendores (chegaste)
de sol ferindo o levante,
fulges-me aos olhos — cristal
entre sonho e a relembrança
do que não sou, do que fui.

(...)

Perante a paz de teu sono.
dentro de mim se desfralda
um jeito novo de amar.
Meus vícios e desvirtudes
cabisbaixos se recolhem
ao mais secreto de mim,
para depois regressarem
humildemente velados
sob as roupagens do amor,
como flores falecidas
que por milagre recobram
suas pétalas mais brancas.

(...)

Teu pranto, de claro timbre,
com suavidades de canto,
leva-me à lágrima, arranca
de céu estéril, orvalho
que, de tão puro, dissolve
os seixos de antigas penas:
de sobre a magoada areia
que entre pesares palmilho,
teu suave pranto me leva
a ignotos ermos caminhos
onde, foscos, se derramam
palores de nove luas.

Em troca, nada te dou.
Meu filho, és retardatário:
o que talvez fora puro
— límpida pérola intacta
no coração escondida —
era frágil, se quebrou.
A porção a mim legada
de substância que permite
mudar de pouso as montanhas,
ouvir o canto das pedras
e caminhar sobre as águas,
era pouca, se acabou.

Pelas esquinas do mundo,
os mistérios já te espreitam
com suas múltiplas faces:
as sombras da solidão
já se insinuam, de manso,
rumo aos campos de teu ser.
Ah que pobre amor paterno!
Pobre de mim, andarilho
cego e sujo, desprovido
dos mais frágeis artifícios
que te afastem dos tormentos
a que nasce condenado
um homem — ser cuja glória
se resume nos covardes
passeios pela floresta
enquanto o Lobo não vem.

Sem mão que possa guiar-te
(mal-aventurada mão!)
em futuros desamparos,
sem boca que te anuncie
o tempo dos malefícios,
uma ventura me resta:
és meu filho — dou-te a bênção.

(...)

E porque nada possuo
digno de oferta a quem chega
de mãos vazias ao mundo,
é que te fiz, sob disfarce
de conversa, este inaudível
solilóquio ao pé do berço. 
Thiego de Mello (Romance do Primogênito, 1952)

SOLILÓQUIO A PIE DE CUNA

Cruzaste
la puerta del tiempo.
Sin resplandores (llegaste)
de sol hiriendo el levante,
ciegas mis ojos — cristal
entre sueño y remembranza
del que no soy, del que fui.
(...)

Ante la paz de tu sueño.
dentro de mí se despliega
un modo nuevo de amar.
Mis vicios e imperfecciones
cabizbajos se retiran
a lo más hondo de mí,
para después regresar
humildemente cubiertos
bajo ropajes de amor,
como flores abatidas
que de milagro recobran
sus pétalos más albinos.
(...)

Tu llanto, de claro timbre,
con suavidades de canto,
me hace llorar, arrancando
del cielo estéril, rocío
que, de tan puro, disuelve
las piedras de antiguas penas:
de la magullada arena
que entre congojas recorro,
tu suave llanto me lleva
a ignotos yermos caminos
donde, oscuros, se derraman
palores de nueve lunas.
En cambio, nada te doy.
Hijo, es desolador:
lo que tal vez fuera puro
— límpida perla intocada
en corazón escondida —
era frágil, se quebró.
La porción a mí legada
de substancia que permite
cambiar de sitio montañas,
oír cantar a las piedras
y caminar sobre el agua,
era poca, se acabó.
Por las esquinas del mundo,
los misterios ya te acechan
con sus múltiples semblantes:
sombras de la soledad
ya se insinúan, tranquilas,
rumbo a partes de tu ser.
¡Ah que pobre amor paterno!
Pobre de mí, caminante
ciego y sucio, desprovisto
del más frágil artificio
que te aleje los tormentos
a que nace condenado
un hombre — ser cuya gloria
se resume en los cobardes
paseos por la espesura
mientras el lobo no viene.
Sin mano que pueda guiarte
(¡malaventurada mano!)
en futuros desamparos,
sin boca que te presagie
los tiempos de maleficios,
aún una dicha me resta:
hijo mío — te bendigo.
(...)

Y porque nada poseo
digno de dar a quien llega,
manos vacías, al mundo,
te hice, bajo disfraz
de charla, este silencioso
soliloquio a pie de cuna. 
Thiago de Mello
(Versión de Pedro Casas Serra) 

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