ROMANCE DE SALATIEL
I — O velório
Se foi triste, se não foi,
se gostou de olhar o azul,
se sofreu por desamor,
se digeria a contento,
se procurou Deus (achou-o?)
não conta mais.
Salatiel
Já é matéria sem ganga,
que se oferta, horizontal,
aos olhares e aos pesares.
Chegam vizinhos, amigos
de longa data, parentes
trajando roupas de festas.
E ao penetrarem na sala,
onde Salatiel repousa
de todos os cansaços,
esquecem-se de si próprios
ou porventura se encontram
com total exatidão:
o rosto bêbado é sóbrio,
o folgazão, compungido,
os sempre austeros ensaiam
gestos suaves e os tristes
disfarçam sua tristeza.
Se foi triste, se não foi,
se gostou de olhar o azul,
se sofreu por desamor,
se digeria a contento,
se procurou Deus (achou-o?)
não conta mais.
Salatiel
Já é matéria sem ganga,
que se oferta, horizontal,
aos olhares e aos pesares.
Chegam vizinhos, amigos
de longa data, parentes
trajando roupas de festas.
E ao penetrarem na sala,
onde Salatiel repousa
de todos os cansaços,
esquecem-se de si próprios
ou porventura se encontram
com total exatidão:
o rosto bêbado é sóbrio,
o folgazão, compungido,
os sempre austeros ensaiam
gestos suaves e os tristes
disfarçam sua tristeza.
Mas Salatiel defunto
adorna o meio da sala
sombria, apesar das
flores,
sem nem perceber, que
pena
que o gordo senhor de
óculos
veio lhe pedir perdão
por malquerenças
antigas,
um vulto esguio num
canto,
a recordar o colóquio
que teve com o morto,
um dia,
chuvoso, em antiga
praça,
e desse encontro
conserva
lembrança em forma de
flor,
que perdura, delicada,
entre as páginas de um
livro
de poemas dee amor
eterno,
do seu barbeiro,
contrito,
que lhe contempla o
bigode,
a barba espesa,
azulada,
e lembra canção de
infância
contando que o capinzal
é
cabeleira de mortos.
Pelas narinas do morto,
que já não sentem o aroma
do café que corre a sala,
penetra o velado som
dos faladores incautos:
cada qual lembra seus mortos,
todos bons, quase perfeitos
em sua humana condição,
imperfeitos, porque humanaos,
mas isentos da soberba.
Depois cambiam de tema:
falam de jogos, de guerras,
comentam velhas intrigas,
fazendo sempre um parêntesis
para louvar as virtudes
de quem foi Salatiel.
Que já não é. Suas orelhas
são búzios côncavos, secos.
Ah, Salatiel, se visses
a ternura de teu filho,
de todos o mais rebelde,
que regozijo seria.
Com quanto zelo ele muda
as velas dos castiçais
e espanta — no gesto, afago—
a mosca da tua boca.
Mas Salatiel não vê.
Como também não percebe
as filhas arrematando
com seus soluços ritmados
o choro seco da mãe
que, em seu respeito ao defunto,
repele os erros furtivos,
o desamor não contado
e o desapreço profundo
de saber-se repartida
que lhe voltam à memória,
já se dissolvem no pranto
e o purificam.
II — O sepulcro
Na clareira de treva
em que o tempo não conta
e onde o brilho de luas
afoga-se em argila,
os vermes já circundam
a carne recém-vinda.
Abraçam-na com júbilo
de seres separados
que afinal se reencontram
e este abraço revela
um sutil parentesco:
não aquele que implica
em um correr de hormônios,
certas cumplicidades
pobres conquanto físicas
e que o tempo desgasta
e em lembrança converte.
Outro, porém, mais fundo,
que elimina a distância
do que, por ser minguado,
alonga-se no sonho,
ao exato minério
feliz em seu contorno:
e brandamente reúne
a besta que se entrega
a êxtases promíscuos
e o que de amor constrói
sandálias adequadas
para a longa excursão,
numa aventura só
de crescer e acabar
e aguardar, entre sombras,
que a mão cega do mundo
vá recompondo as cinzas.
E com um linguajar
que só as coisas entendem
os vermes confabulam
acerca do destino
deste novo parente
que, aos poucos, se devolve
ao útero da terra.
III — Epílogo
O dono de tal carne, todavia,
conhece a paz de canto em que se evola
de garganta demasido tensa.
Liberto dos enredos da memória,
isento de esperança, ele palmilha
os caminhos abstratos, modulados
em matéria de além, de sono puro.
Salatiel não-sendo desconhece
a exata perfeição do que não é
e integra-se à paisagem absoluta
onde nem sombras há das três colunas,
suportes do planalto que assegura
o repouso dos deuses fatigados:
consante prolongar do sétimo dia.
Pelas narinas do morto,
que já não sentem o aroma
do café que corre a sala,
penetra o velado som
dos faladores incautos:
cada qual lembra seus mortos,
todos bons, quase perfeitos
em sua humana condição,
imperfeitos, porque humanaos,
mas isentos da soberba.
Depois cambiam de tema:
falam de jogos, de guerras,
comentam velhas intrigas,
fazendo sempre um parêntesis
para louvar as virtudes
de quem foi Salatiel.
Que já não é. Suas orelhas
são búzios côncavos, secos.
Ah, Salatiel, se visses
a ternura de teu filho,
de todos o mais rebelde,
que regozijo seria.
Com quanto zelo ele muda
as velas dos castiçais
e espanta — no gesto, afago—
a mosca da tua boca.
Mas Salatiel não vê.
Como também não percebe
as filhas arrematando
com seus soluços ritmados
o choro seco da mãe
que, em seu respeito ao defunto,
repele os erros furtivos,
o desamor não contado
e o desapreço profundo
de saber-se repartida
que lhe voltam à memória,
já se dissolvem no pranto
e o purificam.
II — O sepulcro
Na clareira de treva
em que o tempo não conta
e onde o brilho de luas
afoga-se em argila,
os vermes já circundam
a carne recém-vinda.
Abraçam-na com júbilo
de seres separados
que afinal se reencontram
e este abraço revela
um sutil parentesco:
não aquele que implica
em um correr de hormônios,
certas cumplicidades
pobres conquanto físicas
e que o tempo desgasta
e em lembrança converte.
Outro, porém, mais fundo,
que elimina a distância
do que, por ser minguado,
alonga-se no sonho,
ao exato minério
feliz em seu contorno:
e brandamente reúne
a besta que se entrega
a êxtases promíscuos
e o que de amor constrói
sandálias adequadas
para a longa excursão,
numa aventura só
de crescer e acabar
e aguardar, entre sombras,
que a mão cega do mundo
vá recompondo as cinzas.
E com um linguajar
que só as coisas entendem
os vermes confabulam
acerca do destino
deste novo parente
que, aos poucos, se devolve
ao útero da terra.
III — Epílogo
O dono de tal carne, todavia,
conhece a paz de canto em que se evola
de garganta demasido tensa.
Liberto dos enredos da memória,
isento de esperança, ele palmilha
os caminhos abstratos, modulados
em matéria de além, de sono puro.
Salatiel não-sendo desconhece
a exata perfeição do que não é
e integra-se à paisagem absoluta
onde nem sombras há das três colunas,
suportes do planalto que assegura
o repouso dos deuses fatigados:
consante prolongar do sétimo dia.
O outrora sonhador de
galardões,
que passeou pelo bosque dos enigmas
e entregou-se a engenhos intrincados
como o de mergulhar na própria luz
e de lá regressar sujo de treva,
ou do chão mais rasteiro para erguer montanhas,
exerce, então, mister dos mais humildes:
Salatiel não sendo já faz parte
do azul na arquitetura do vazio.
que passeou pelo bosque dos enigmas
e entregou-se a engenhos intrincados
como o de mergulhar na própria luz
e de lá regressar sujo de treva,
ou do chão mais rasteiro para erguer montanhas,
exerce, então, mister dos mais humildes:
Salatiel não sendo já faz parte
do azul na arquitetura do vazio.
Thiago de Mello (De Silêncio e Palavra, 1951)
ROMANCE DE SALATIEL
I — El velatorio
Estuviese triste o no,
gustó de mirar el
cielo,
padeció por desamor,
se alimentaba contento,
a Dios buscó (¿lo
encontró?)
no importa ya.
Salatiel
es ya materia sin
ganga,
que se ofrece,
horizontal,
a
miradas y congojas.
Llegan vecinos, amigos
de mucho tiempo,
parientes
vistiendo ropas de
fiesta.
Y al penetrar en la
sala,
donde Salatiel reposa
de tantísimas fatigas,
no se acuerdan de sí
mismos
o por ventura se
encuentran
con total exactitud:
el rostro borracho es
sobrio,
el alegre, compungido,
los siempre austeros
ensayan
gestos suaves y los
tristes
disimulan
su tristeza.
Pero Salatiel difunto
orna el centro de la
sala
sombría, pese a las
flores,
sin percatarse, qué
lástima,
que el señor gordo con
gafas
vino a pedirle perdón
por antiguas
malquerencias,
uno alto en una
esquina,
a recordar el coloquio
que tuvo con el
difunto,
en la plaza un día
lluvioso,
y de ese encuentro
conserva
recuerdo en forma de
flor,
que perdura, delicada,
entre las hojas de un
libro
de poemas de amor
eterno,
de su barbero,
contrito,
que le contempla el
bigote,
la barba espesa,
azulada,
y evoca cantos de
infancia
narrando que el
hierbazal
es
cabellera de muerto.
Por las narices del
muerto,
que no aspiran el aroma
de café que hay en la
sala,
penetra el velado
hablar
de los incautos
bocazas:
todos recuerdan sus
muertos,
tan buenos, casi
perfectos
en su humana condición,
imperfectos, por
humanos,
pero exentos de
soberbia.
Luego varían de tema:
hablan de juegos, de
guerras,
comentan viejas
intrigas,
haciendo siempre un
paréntesis
para loar las virtudes
de quien fuera
Salatiel.
Que ya no es. Sus
orejas
son
conchas cóncavas, secas.
Ah, Salatiel, si tú
vieras
la ternura de tu hijo,
el más rebelde de
todos,
que contento que
estarías.
Con cuanto celo él
renueva
de velas los candeleros
y espanta — con dulce
gesto—
una mosca de tu boca.
Pero Salatiel no ve.
Como tampoco percibe
a sus hijas rematando
con sus hipidos
ritmados
el seco llanto materno
que, por respeto al
difunto,
ahuyenta errores
furtivos,
desamores no narrados
y el menosprecio
profundo
de saberse compartida
que vuelven a su
memoria,
se disuelven en el
llanto
y
lo purifican.
II — El sepulcro
En claridad de
tinieblas
en que nada cuenta el
tiempo
y donde el brillo de
lunas
se disimula en arcilla,
los gusanos ya
circundan
la carne recién
llegada.
La abrazan con la
alegría
de personas separadas
que finalmente se
encuentran
y en este abrazo
revelan
un suave parentesco:
no aquel que viene ya
implícito
en un propagar de
hormonas,
pequeñas complicidades
pobres por cuanto son
físicas
que va desgastando el
tiempo
y convirtiendo en
recuerdos.
Sino otro, más
profundo,
que deshace la
distancia
de lo que, por ser
menguado,
va prolongando en el
sueño,
hasta aquel mismo filón
que es feliz en su
contorno:
y reúne con bondad
a la bestia que se
entrega
a los éxtasis
promiscuos
y lo que hace del amor
las sandalias adecuadas
para una larga
excursión,
en la aventura tan sólo
de crecer y terminar
y aguardar, entre las
sombras,
que ciega mano del
mundo
amontone las cenizas.
Y en su propio dialecto
que sólo ellos
comprenden
los gusanos van
hablando
sobre la fatalidad
de este inédito
pariente
que, lentamente,
regresa
al
útero de la tierra.
III — Epílogo
El dueño de la carne, todavía,
oye la paz del canto que se eleva
de una garganta demasiado tensa.
Libre de los enredos del recuerdo,
exento de esperanzas, él recorremos
los caminos abstractos, modulados
del ser del más allá, de sueño puro.
No siendo, desconoce Salatiel
la exacta perfección de lo que no es
e integra totalmente en el paisaje
donde no hay sombra de las tres
columnas,
soportes de altiplano que aseguran
el reposo a los cansados dioses:
prolongación tenaz del día séptimo.
El antes soñador de galardones,
que por bosques de enigmas paseó
y se entregó a ingenios intrincados
como el bucear en la luz propia
y de allá regresar sucio de sombras,
o alzar montañas del rastrero suelo,
ejerce, ya, labores más humildes:
No siendo, Salatiel forma ya parte
del azul en la arquitectura del vacío.
Thiago de Mello
(Versión de Pedro Casas Serra)
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